Política

O Escravo | por Elias Canetti

"O escravo é uma propriedade como o gado o é, e não como uma coisa inanimada. Sua liberdade de movimentos lembra a de um animal ao qual se permite pastar e fundar algo como uma família. O verdadeiro caráter de uma coisa é sua impenetrabilidade. Ela pode ser chutada e empurrada, mas é incapaz de armazenar ordens. A definição jurídica do escravo como coisa e como propriedade é, pois, enganosa. Ele é um animal e uma propriedade. É antes com um cão que se pode comparar um escravo. O cão capturado foi retirado do seio de sua matilha: foi isolado. Está sob as ordens de seu dono."

Experimentação, Filosofia, Política

Capitalismo e Esquizofrenia | entrevista de Deleuze e Guattari

“Pode-se mesmo falar de uma espécie de parafrenização da linguagem militar, ou então, nesse momento, da linguagem dos militantes políticos. (...) Podemos nos perguntar se as expressões dos militares, dos políticos, dos cientistas não são em realidade, muito exatamente, uma espécie de antiprodução, uma espécie de trabalho de repressão no nível da expressão cujo objetivo é parar o trabalho de questionamento, trabalho incessante, transbordante, que se perde simplesmente no movimento real das coisas.”.

Experimentação, Filosofia

Causas e razões das ilhas desertas | Gilles Deleuze

A ilha é o mínimo necessário para esse recomeço, o material sobrevivente da primeira origem, o núcleo ou o ovo irradiante que deve bastar para re-produzir tudo. Evidentemente, isso tudo supõe que a formação do mundo se dê em dois tempos, em dois estágios, nascimento e renascimento; supõe que o segundo seja tão necessário e essencial quanto o primeiro; supõe, portanto, que o primeiro esteja necessariamente comprometido, que ele tenha nascido para uma retomada e já re-negado numa catástrofe. Somente há um segundo nascimento porque houve uma catástrofe e, inversamente, há catástrofe após a origem porque deve haver, desde a origem, um segundo nascimento. Podemos encontrar em nós a fonte desse tema: para apreciar a vida, nós a alcançamos não em sua produção, mas em sua reprodução. O animal, cujo modo de reprodução se ignora, ainda não ocupou lugar entre os vivos. Não basta que tudo comece, é preciso que tudo se repita, uma vez encerrado o ciclo das combinações possíveis. A segunda origem, portanto, é mais essencial que a primeira, porque ela nos dá a lei da série, a lei da repetição, da qual a primeira origem apenas nos dava os momentos.

Filosofia

5 aulas sobre Nietzsche | por Oswaldo Giacóia

Ele está querendo dizer o seguinte: é muito possível que nós sem questionar que sejamos de fato efetivos, sem questionar que existamos, talvez essa nossa existência, tal como nós julgamos o existir, não seja senão algo simplesmente aparente, como o arco-íris. O arco-íris não remete a nenhuma coisa de real, sólida, subsistente, mas simplesmente um efeito luminoso. Então, vejam: se nós admitirmos como admitiu Descartes, que talvez possa haver uma potência de falsidade na essência das coisas, então quem é que garante que, na verdade, nós não somos nada mais nada menos do que pensamentos de Deus? E se eu penso Deus como essa possibilidade universal do engano, então ao pensar, por causa do pensamento, que eu sou e ao assegurar a minha própria existência como objeto a partir do pensamento, talvez eu não esteja senão me enganando, exatamente obedecendo a esta potência universal do falso e fazendo algo assim como se o arco-íris, exatamente pelo fato de aparecer, possa reivindicar para si uma existência como algo concreto, como algo substancial. Então, da mesma forma como o arco-íris não deixa de ser ou não deixa de aparecer sem efetivamente ser alguma, muito provavelmente a ilusão cartesiana do ego é da mesma natureza, ou seja, parece para mim que eu sou algo, mas na verdade eu não sou senão uma pura superfície.

Filosofia, Política

A ordem: fuga e aguilhão | por Elias Canetti

"Toda ordem compõe-se de um impulso e de um aguilhão. O impulso obriga o receptor ao seu cumprimento, e, aliás, da forma como convém ao conteúdo da ordem. O aguilhão, por sua vez, permanece naquele que a executa. Quando o funcionamento das ordens é o normal, em conformidade com o que se espera delas, nada se vê desse aguilhão. Ele permanece oculto, e não se imagina que exista; antes do cumprimento da ordem ele talvez, quase imperceptivelmente, se manifeste numa ligeira resistência. Mas esse aguilhão penetra fundo no ser humano que cumpriu uma ordem, e permanece imutavelmente cravado ali. Dentre todas as construções psíquicas, nada há que seja mais imutável. O conteúdo da ordem preserva-se no aguilhão; sua força, seu alcance, sua delimitação — tudo isso foi já definitivamente prefigurado no momento em que a ordem foi transmitida. Pode levar anos, décadas, até que aquela porção fincada e armazenada da ordem — sua imagem exata em pequena escala — ressurja. Mas é importante saber que ordem alguma jamais se perde; ela nunca se esgota realmente em seu cumprimento, mas permanece armazenada para sempre."

Experimentação, História, Política

Poder e Velocidade | por Elias Canetti

"Imitado pelos homens, o raio foi transformado numa espécie de arma: a arma de fogo. O clarão e o estrondo do tiro, o fuzil e particularmente os canhões sempre provocaram o medo dos povos que não os possuíam: estes os percebiam como o raio. (...) Ainda antes, porém, os esforços do homem caminhavam já na direção de torná-lo um animal mais veloz. A domesticação do cavalo e o desenvolvimento dos exércitos de cavaleiros, em sua forma mais completa, conduziram às grandes invasões históricas provenientes do Oriente. Todos os relatos da época acerca dos mongóis destacam quão velozes eles eram. Sua aparição era sempre inesperada: eles surgiam tão repentinamente quanto desapareciam, e reapareciam de maneira ainda mais abrupta. Sabiam converter em ataque até mesmo a pressa da fuga: mal se começava a crer que haviam fugido, estava-se já novamente cercado por eles. Desde sempre, a velocidade física, como característica do poder, intensificou-se de todas as formas. Desnecessário faz-se abordar seus efeitos sobre nossa era tecnológica."

Experimentação, Filosofia, História, Política, Semiologia

“Fuck”, “Sex”, “Tech” e “Gênero”: quando a América afunda.

"(...) Com “cis-gênero” as coisas se embaralham: uns dizem que a pessoa cis gênero é aquela que aceita o sexo que lhe destinou o nascimento; outras dizem que é aquele que aceita o gênero destinado no nascimento; outras que são “os indivíduos dos quais o gênero de nascimento, o corpo e a identidade pessoal coincidem” (entenda quem puder); outras falam de cissexual para descrever “as pessoas que não são transsexuais e que sempre conceberam seus sexos físico e mental alinhados”. Enfim, ser cis gênero é ser singularmente demarcado, sexista, normativo e normalizado. E será ainda mais se se insurgir contra a ideia (aberrante de um ponto de vista biológico) de que o sexo possa ser “destinado” no nascimento, e se se persiste em pensar – é o meu caso – que o sexo é constatado no nascimento, da mesma maneira que constatamos que o recém-nascido tem dois olhos, um nariz, etc.".

Filosofia, Política, Semiologia

Pergunta e resposta | por Elias Canetti

Toda pergunta é uma intromissão. Onde ela é aplicada como um instrumento de poder, a pergunta corta feito faca a carne do interrogado. Sabe-se de antemão o que se pode descobrir, mas quer-se descobri-lo e tocá-lo de fato. Com a segurança de um cirurgião, o inquiridor precipita-se sobre os órgãos do interrogado. Esse cirurgião mantém viva sua vítima para saber mais sobre ela. É uma espécie particular de cirurgião, que atua provocando deliberadamente a dor em certos pontos; estimula certas porções da vítima para saber de outras com maior segurança.

Experimentação, Filosofia, Política

A coerência do estoicismo: uma alface por um óbolo

O que podem nos ensinar essas reflexões estoicas? Em primeiro lugar, parece-me que encontramos nas reflexões acima uma resposta à tendência atual de querer tudo, imediatamente, sem que nada nos seja pedido em troca. E a multiplicação das amostras grátis, das degustações gratuitas e dos presentinhos que a publicidade nos oferece não podem senão nos confirmar nessa tendência. Há nos estoicos ao contrário uma noção de sacrifício tornado necessário para se obter os verdadeiros privilégios, os verdadeiros bens. Ao entusiasmo atual com tudo o que é dado gratuitamente opõe-se a sabedoria estoica que reestabelece um preço ao que importa verdadeiramente.

Filosofia

Epicteto: a felicidade por desapego

A sabedoria consiste antes em operar um desapego, em querer afinar sua razão com aquela do Todo através de juízos corretos, e em contemplar o que é dado a ver, sem juntar-lhe julgamento moral ou simplesmente um julgamento que reprova objetivamente o que é vivido: Alguém se banha às pressas. Não diz que isso é ruim, mas que é às pressas. Alguém bebe muito vinho: não diz que isso é mal, mas que é muito.

Filosofia

Gilles Deleuze: A propósito dos novos filósofos

"Acho que o pensamento deles é nulo. Vejo duas razões possíveis para essa nulidade. Em primeiro lugar, procedem por grandes conceitos, tão grandes quanto um vão de prédio: A lei, O poder, O mestre, O mundo, A rebelião, A fé etc. Assim, eles podem fazer misturas grotescas, dualismos sumários, a lei e o rebelde, o poder e o anjo. Ao mesmo tempo, quanto mais fraco é o conteúdo do pensamento, tanto mais o pensador ganha importância, tanto mais o sujeito de enunciação se arroga importância relativamente aos enunciados vazios (“eu, na medida em que eu sou lúcido e corajoso, digo a vocês…, eu, na posição de soldado do Cristo…, eu, da geração perdida…, nós, na medida em que fizemos o Maio de 68…, na medida em que não nos deixamos enganar pelos semelhantes…”). Com esses dois procedimentos, estão esculhambando o trabalho".

Arte, Filosofia

Gilles Deleuze recita Nietzsche (legendas em português)

Ao som de Richard Pinhas e da banda Heldon, o filósofo Gilles Deleuze recita "O Andarilho", aforismo nº. 638 de Friedrich Nietzsche em "Humano, Demasiado Humano". O vídeo é uma montagem com cenas do filme "Dias de Nietzsche em Turim", do cineasta Júlio Bressane, e está legendado em português.

Arte, Experimentação, Filosofia

País de dançarinos e de ritmos mancos | por Jérôme Cler

A impossibilidade da leveza, a elegância insensata dos dançarinos – entretanto frequentemente bastante corpulentos -, a alegria como virtude no centro desse mundo de onde todo pathos parecia estar ausente. Potência da repetição: a música pega sempre no seu círculo, nada mais do que um círculo ou uma espiral, e a melodia de dança se fecha sobre si mesma, na vila, e se junta em direção ao seu centro sempre aproximado pelos dançarinos.

Arte, Experimentação, Filosofia

O corpo no cinema de John Cassavetes | por Viviane de Lamare

'Dar' um corpo, dirigir uma câmera sobre o corpo, assume outro sentido: não se trata mais de seguir e acuar o corpo cotidiano, mas de fazê-lo passar por uma cerimônia, (...) que faz dele um corpo grotesco, mas também extrai dele um corpo gracioso ou glorioso, para atingir enfim o desaparecimento do corpo visível

Arte, Filosofia, História, Política

“A Morte de Empédocles”, filme de Jean-Marie Straub & Danièle Huillet.

Link para baixar o torrent e a legenda: https://goo.gl/KMR3Hd Uma pedagogia para a grandeza, para o excepcional, para o desmedido. Um olhar para a altivez do criminoso, para o desgraçado sem remorso... e também para o outro lado, para a baixeza organizada e sustentada pelo poder. Um filme que desdobra o verso de Leminski: “não… Continuar lendo “A Morte de Empédocles”, filme de Jean-Marie Straub & Danièle Huillet.