Filosofia

Gilles Deleuze: A propósito dos novos filósofos

Trad.: Guilherme Ivo.

“A propósito dos novos filósofos e de um problema mais geral”: Entrevista com Gilles Deleuze (1977)

— O que você pensa dos novos filósofos?
— Nada. Acho que o pensamento deles é nulo. Vejo duas razões possíveis para essa nulidade. Em primeiro lugar, procedem por grandes conceitos, tão grandes quanto um vão de prédio: A lei, O poder, O mestre, O mundo, A rebelião, A fé etc. Assim, eles podem fazer misturas grotescas, dualismos sumários, a lei e o rebelde, o poder e o anjo. Ao mesmo tempo, quanto mais fraco é o conteúdo do pensamento, tanto mais o pensador ganha importância, tanto mais o sujeito de enunciação se arroga importância relativamente aos enunciados vazios (“eu, na medida em que eu sou lúcido e corajoso, digo a vocês…, eu, na posição de soldado do Cristo…, eu, da geração perdida…, nós, na medida em que fizemos o Maio de 68…, na medida em que não nos deixamos enganar pelos semelhantes…”). Com esses dois procedimentos, estão esculhambando o trabalho. Pois já faz algum tempo que, em toda sorte de domínios, as pessoas trabalham para evitar esses perigos aí. Tenta-se formar conceitos de articulação fina, ou bastante diferenciada, para escapar das grandes noções dualistas. E tenta-se resgatar as funções criadoras que não mais passariam pela função-autor (na música, na pintura, no audiovisual, no cinema, e mesmo na filosofia). Esse retorno massivo a um autor ou a um sujeito vazio mui vaidoso, e a conceitos sumários estereotipados, representa uma força de reação deplorável. Está em conformidade com a reforma Haby: um sério aminguamento do “programa” da filosofia.

— Você está dizendo isso porque B.-H. Lévy, em seu livro Barbarie à visage humain [Barbárie com rosto humano], atacou violentamente Guattari e você?
— Não, não, não. Ele diz que há um liame profundo entre O anti-Édipo e a “apologia ao putrefato sobre um instrumento de decadência” (é assim que ele fala), um liame profundo entre O anti-Édipo e os drogados. Pelo menos isto fará os drogados rirem. Ele também disse que o CERFI [Centre d’Études de Recherche e de Formation Institutionelle] é racista: aí já é ignóbil. Faz muito tempo que eu queria falar dos novos filósofos, mas não via como. Imediatamente, eles diriam: vejam como ele tem inveja do nosso sucesso. A eles está reservado o ofício de atacar, de responder, de responder às respostas. Já eu, só posso fazer isso uma vez. Não responderei uma segunda vez. O que mudou a situação para mim foi o livro de [François] Aubral e [Xavier] Delcourt, Contre la nouvelle philosophie. Aubral e Delcour tentam verdadeiramente analisar este pensamento, e chegam a resultados bastante cômicos. Fizeram um belo livro tônico e foram os primeiros a protestar. Eles foram inclusive à televisão para enfrentar os novos filósofos no programa Apostrophes. Então, para falar como o inimigo, um Deus me disse que eu deveria seguir Aubral e Delcourt, que eu tivesse essa lúcida e pessimista coragem.

— Se é um pensamento nulo, como explicar que pareça ter tanto sucesso, que se difunda e receba adesões como a de Sollers?
— Há vários problemas bem diferentes. Primeiramente, viveu-se por muito tempo na França sob um certo modo literário das “escolas”. Isso já é terrível, uma escola: sempre há um papa, manifestos, declarações do tipo “eu sou a vanguarda”, excomunhões, tribunais, reviravoltas políticas etc. Em princípio geral, tem toda razão quem diz que passou sua vida se enganando, pois sempre é possível dizer “eu passei por isso”. Eis porque os stalinistas são os únicos a poderem dar lições de antistalinismo. Mas enfim, por mais miseráveis que sejam as escolas, não se pode dizer que os novos filósofos sejam uma escola. A novidade real deles é que introduziram na França o marketing literário ou filosófico, em vez de fazerem uma escola. O marketing tem seus princípios particulares: 1) é preciso que falem de um livro ou que o façam falar, mais do que o próprio livro fala ou tem a dizer. No limite, é preciso que a batelada dos artigos de jornais, de entrevistas, de colóquios, de programas de rádio ou de tevê substituam o livro, que poderia muito bem nem sequer existir. É por isso que o trabalho ao qual se entregam os novos filósofos diz menos respeito aos livros que fazem do que aos artigos a serem obtidos, aos jornais e teleprogramas a serem ocupados, às entrevistas que devem conseguir, ao dossiê que deve ser feito, ao número da Playboy. Existe nisso toda uma atividade que, nessa escala e nesse grau de organização, parecia excluída da filosofia, ou excluir a filosofia. 2) E então, do ponto de vista de um marketing, é preciso que o mesmo livro ou o mesmo produto tenha várias versões, para convencer todo mundo: uma versão devota, uma ateia, uma heideggeriana, uma esquerdista, uma centrista, até mesmo uma chiracquiana ou neofascista, uma “união da esquerda” nuançada etc. Daí a importância de uma distribuição dos papéis de acordo com os gostos. Existe um dr. Mabuse em [Maurice] Clavel, um dr. Mabuse evangélico, [Christian] Jambert e [Guy] Lardreau são Spöri e Pesch, os dois ajudantes de Mabuse (eles querem “botar a mão na gola” de Nietzsche). [Jean-Marie] Benoist é o mensageiro, é Nestor. [Bernard-Henri] Lévy é ora o empresário, ora a script-girl, ora o apresentador alegre, ora o disc-jockey. Jean Cau acha tudo isso uma beleza; [Alfred] Fabre-Luce vira discípulo de [André] Glucksmann; reedita-se [Julien] Benda, para as virtudes do clero. Que estranha constelação.
Na França, Sollers havia sido o último a fazer uma escola à velha maneira, com papismo, excomunhões, tribunais. Suponho o que ele tenha dito a si mesmo, quando ficou sabendo deste novo empreendimento, que tinha razão, que era preciso fazer uma aliança e que seria muito imbecil deixar que isso escapasse. Ele chega atrasado, mas decerto viu algo. Pois essa história de marketing do livro de filosofia é realmente nova, é uma ideia, era “preciso” tê-la. Que os novos filósofos restaurem uma função-autor vazia, e que procedam com conceitos furados, toda esta reação não impede um profundo modernismo, uma análise bastante adaptada da paisagem e do mercado. Aliás, acredito que alguns dentre nós possam até mesmo experimentar uma curiosidade benevolente por essa operação de ponto de vista puramente naturalista ou entomológico. Para mim é diferente, pois o meu ponto de vista é teratológico: é um horror.

— Se é uma questão de marketing, como você explica que tenha sido preciso esperar por eles e que tenha chegado a hora de isso eventualmente fazer sucesso?
— Por várias razões, que nos ultrapassam e ultrapassam até eles próprios. André Scala analisou recentemente uma certa reviravolta nos entrelaces jornalistas-escritores, imprensa-livro. O jornalismo tomou, em ligação com a rádio e a tevê, cada vez mais vivamente consciência de sua possibilidade de criar o acontecimento (as fugas controladas, Watergate, as sondagens?). E assim como tinha menos necessidade que se reportar a acontecimentos exteriores, pois criava grande parte deles, tinha menos necessidade também de se reportar a análises exteriores ao jornalismo, ou a personagens do tipo “intelectual”, “escritor”: o jornalismo descobria em si próprio um pensamento autónomo e suficiente. Eis por que, no limite, um livro vale menos que o artigo de jornal sobre ele ou a entrevista que ele ocasiona. Os intelectuais e os escritores, mesmo os artistas, são portanto incitados a devirem jornalistas caso queiram se conformar às normas. É um novo tipo de pensamento, o pensamento-entrevista, o pensamento bate-papo, o pensamento-minuto. Imagina-se um livro que diria respeito a um artigo de jornal, e não mais o inverso. Os entrelaços de força entre jornalistas e intelectuais mudaram completamente. Tudo começou com a tevê e os números de adestramento por que passaram os intelectuais condescendentes na mão dos entrevistadores. O jornal não precisa mais do livro. Não estou dizendo que esse reviramento, essa domesticação do intelectual, essa jornalização seja uma catástrofe. É mais ou menos assim: no mesmo momento em que a escrita e o pensamento tendiam a abandonar a função-autor, no momento em que as criações já não passavam pela função-autor, esta foi recuperada pela rádio, pela tevê e pelo jornalismo. Os jornalistas devinham os novos autores, e os escritores que ainda ansiavam por serem autores deviam passar pelos jornalistas ou devirem seus próprios jornalistas. Uma função caída num certo descrédito encontrava uma modernidade e um novo conformismo, ao mudar de lugar e de objeto. É isso que tornou possível as empresas de marketing intelectual. Será que existem outros usos atuais para a tevê, a rádio ou jornal? Evidentemente, mas essa não é mais a questão dos novos filósofos. Eu gostaria de falar sobre isso daqui a pouco.
Há uma outra razão. Estamos há um bom tempo em período eleitoral. Ora, as eleições não são um ponto local, nem um dia, uma data certa. É como uma grade, que atualmente afeta a nossa maneira de compreender e até mesmo de perceber. Assentam-se todos os acontecimentos, todos os problemas, sobre essa grade deformante. As condições particulares das eleições hoje em dia fazem com que o limiar habitual de babaquice suba. É sobre essa grade que os novos filósofos se inscreveram desde o início. Pouco importa que alguns deles dentre eles tenham sido imediatamente contra a união da esquerda, enquanto outros teriam ansiado por fornecer mais um brain-trust a Mitterrand. Uma homogeneização das duas tendências foi produzida, principalmente contra a esquerda, mas sobretudo a partir de um tema que estava presente já em seus primeiros livros: o ódio a 68. Disputavam para ver quem vilipendiava melhor o Maio de 68. É em função desse ódio que eles construíram seus sujeitos de enunciação: “Nós, na medida em que fizemos o Maio de 68 (???), podemos dizer que era tolice e que não o faremos mais”. Para vender, eles têm apenas um rancor de 68. É nesse sentido, seja qual for a posição deles relativamente às eleições, que se inscrevem perfeitamente na grade eleitoral. A partir disso, tudo passa pela grade, marxismo, maoismo, socialismo etc., não porque as lutas reais teriam feito com que novos inimigos surgissem, novos problemas e novos meios, mas porque A revolução deve ser declarada impossível, uniformemente e em todos os tempos. Eis por que todos os conceitos que começavam a funcionar de uma maneira bastante diferenciada (os poderes, as resistências, os desejos, mesmo a “plebe”) são novamente globalizados, reunidos na insossa unidade do poder, da lei, do Estado etc. Eis porque também o Sujeito pensante volta à cena, pois a única possibilidade da revolução, para os novos filósofos, é o ato puro do pensador que a pensa como impossível.
O que me desagrada é bastante simples: os novos filósofos fazem uma martirologia, o gulag e as vítimas da história. Vivem de cadáveres. Descobriram a função-testemunha, que é a mesma coisa que a função de autor ou de pensador (vejam o número da Playboy: nós somos as testemunhas…). Porém, jamais teriam havido vítimas se elas tivessem pensado como eles, ou falado como eles. Foi preciso que as vítimas pensassem e vivessem de uma maneira completamente distinta, para dar matéria àqueles que choram em seu nome, e que pensam em seu nome, e que dão lições em seu nome. Os que arriscam a própria vida geralmente pensam em termos de vida, e não de morte, amargor e vaidade mórbida. Os resistentes são, na verdade, grandes viventes. Nunca alguém foi colocado na prisão pela sua impotência e pelo seu pessimismo, ao contrário. Do ponto de vista dos novos filósofos, as vítimas se deixaram capturar por que ainda não haviam compreendido aquilo que os novos filósofos compreenderam. Se eu fizesse parte de uma associação, levantaria uma queixa contra os novos filósofos, que desprezam um pouco demais os habitantes do gulag.

— Você não estaria, ao denunciar o marketing, militando pela concepção do velho livro ou pelas escolas à maneira antiga?
— Não, não, não. Não há necessidade alguma de uma escolha dessas: ou marketing, ou velha maneira. Essa escolha é falsa. Tudo o que atualmente ocorre de vivo escapa a essa alternativa. Veja como trabalham os músicos, como as pessoas trabalham nas ciências, como certos pintores tentam trabalhar, como geógrafos organizam o seu trabalho (cf. a revista Heródote). O primeiro traço são os encontros. De modo algum os colóquios ou os debates, mas, trabalhando em um domínio, encontram-se pessoas que trabalham num domínio totalmente outro, como se a solução viesse sempre d’alhures. Não se trata de comparações ou de analogias intelectuais, mas de intersecções efetivas, de cruzamentos de linhas. Por exemplo (esse exemplo é importante, porque os novos filósofos falam bastante de história da filosofia), André Robinet renova, hoje, a história da filosofia com computadores; ele encontra forçosamente Xenakis. Que matemáticos possam fazer com que um problema de outra natureza evolua e se modifique, isso não significa que o problema receba uma solução matemática, mas que ele comporta uma sequência matemática que entra em conjugação com outras sequências. É assustadora a maneira pela qual os novos filósofos tratam “a” ciência. Encontrar com o seu próprio trabalho o trabalho dos músicos, dos pintores ou dos cientistas é a única combinação atual que não se coaduna nem com as velhas escolas nem com um neomarketing. São esses pontos singulares que constituem focos de criação, funções criadoras independentes da função-autor, destacadas da função-autor. E isso não vale somente para cruzamentos de domínios diferentes; cada domínio, cada pedaço de domínio, por pequeno que seja, já é feito de tais cruzamentos. Os filósofos devem vir de qualquer lugar: não no sentido em que a filosofia dependeria de uma sabedoria popular espalhada por aí, mas no sentido em que cada encontro a produz, ao mesmo tempo em que define um novo uso, uma nova posição de agenciamentos — músicos selvagens e rádios piratas. Muito bem, cada vez que as funções criadoras desertam assim a função-autor, vemos esta se refugiar em um novo conformismo de “promoção”. É toda uma série de batalhas mais ou menos visíveis: o cinema, a rádio a TV são a possibilidade de funções criadoras que destituíram o Autor; mas a função-autor se reconstitui ao abrigo dos usos conformistas dessas mídias. As grandes produtoras voltam a fomentar um “cinema de autor”; Jean-Luc Godard encontra então o meio para fazer com que a criação passe na televisão; mas a poderosa organização da tevê tem as suas próprias funções-autor, pelas quais impede a criação. Quando a literatura, a música etc. conquistam novos domínios de criação, a função-autor se reconstitui no jornalismo, que vai sufocar suas próprias funções criadoras e as da literatura. Novamente, nos deparamos com os novos filósofos: eles reconstituíram um aposento sufocante, asfixiante, lá por onde passava um pouco de ar. É a negação de toda política e de toda experimentação em suma. Eu os condeno por que fazem um trabalho de porco; e porque esse trabalho se insere em um novo tipo de entrelace imprensa-livro perfeitamente reacionário: novo, sim, porém conformista ao extremo. Não são os novos filósofos que importam. Mesmo que desapareçam amanhã, seu empreendimento de marketing será recomeçado. Com efeito, este representa a submissão de todo pensamento às mídias; simultaneamente, dá a essas mídias o mínimo de garantia e de tranquilidade intelectuais para sufocar as tentativas de criação que fariam com que as próprias mídias se mexessem. Há tantos debates cretinos na televisão, tantos filminhos narcísicos de autor — quanto menos há de criação possível na tevê e alhures. Eu gostaria de propor uma carta dos intelectuais, na situação atual em que estão relativamente a mídia, levando em conta as novas conexões de forças: recusar, fazer valerem as exigências, virar produtores, em vez de serem autores aos quais só resta a insolência dos domésticos ou o brilho de um clown serviçal. Beckett, Godard souberam se virar e criaram de duas maneiras bem diferentes: há muitas possibilidades no cinema, no audiovisual, na música, nas ciências, nos livros… Mas os novos filósofos são verdadeiramente a infecção que se esforça para impedir tudo isso. Nada de vivo passa por eles, mas terão cumprido sua função se ocuparem a cena o suficiente para mortificar alguma coisa.

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Transcrita de DELEUZE, Gilles; LAPOUJADE, David (org.). Dois Regimes de Loucos: Textos e Entrevistas (1975–1995). Tradução de Guilherme Ivo. São Paulo: Editora 34, 2016. p. 143–151. [As notas de rodapé da tradução não foram transcritas, mas parte de suas informações foram aglutinadas ao texto, entre colchetes].

Publicado originalmente no site Mil Brechas

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